domingo, 1 de novembro de 2015

A propósito de ilegitimidades e do que nos espera

Imagem de Nei Lima
É uma delícia ler e ouvir aqueles que hoje escrevem e falam sobre uma alegada ilegitimidade de um eventual governo do PS sustentado pelo apoio dos partidos da esquerda parlamentar. O delicioso argumento que sustenta esta tese é uma tremenda embrulhada de afirmações que, articuladas entre si, conduzem a conclusão nenhuma. Mas é desse amontoado argumentativo — que mistura eleições, tradições, campanhas eleitorais, arcos da governação e da não governação, tratados orçamentais, euros, NATOS, estabilidades, credibilidades e conformidades — que há quem retire, em desespero e sem pudor, a ideia de que um governo daquela natureza não é legítimo. Dizem: quem venceu as eleições foi a coligação de direita, logo, deve governar; é da tradição que quem tem mais votos forme governo; na campanha eleitoral ninguém falou em governo de esquerda, logo, não pode formar-se; BE e PCP não fazem parte do arco da governação, logo, não podem governar nem apoiar um governo; BE e PCP são contra o Tratado Orçamental e contra a NATO e dizem que devemos estudar a necessidade de uma eventual saída do euro, logo, não podem governar nem apoiar um governo; BE e PCP não asseguram estabilidade, não asseguram credibilidade nem durabilidade a um governo, logo, não podem governar nem apoiar um governo. 

Quando tudo isto é enumerado de uma vez só, para além do cansaço que gera em quem o ouve ou o lê, gera também a ideia de que o mundo vai acabar e que a argumentação é séria. Mas nem o mundo vai acabar nem a argumentação é séria. Podemos confirmar:
— é verdade que a coligação de direita teve mais votos do que cada um dos outros partidos? É verdade, mas o PS, o BE e o PCP coligados têm mais votos do que a coligação de direita. Para além disso formam uma maioria parlamentar, e a coligação de direita não forma. Por outro lado, convém recordar que as coligações podem ser pré ou pós-eleitorais. A coligação PSD-CDS, em 2011, foi pós-eleitoral, como esta que agora se desenha entre o PS, o BE e o PCP. De onde vem então o queixume?;
— é da tradição que quem tem mais votos forme governo? É, mas ainda que nenhuma tradição tenha valor só porque é tradição; neste caso, a tradição também foi cumprida: a coligação de direita já foi constituída como governo. De onde vem o queixume?;
— é verdade que na campanha eleitoral ninguém falou na formação de um governo de esquerda? Não é verdade. Todos assistimos, em directo e a cores, à interpelação de Catarina Martins a António Costa, no debate entre ambos, sobre as três condições que colocava para o estabelecimento de um acordo pós-eleitoral. O próprio António Costa repetiu várias vezes que se opunha à ideia da existência de um muro que supostamente excluísse o BE e o PCP de responsabilidades governativas. Também Jerónimo de Sousa disse várias vezes, durante a campanha eleitoral, que não havia nenhuma impossibilidade intransponível para um acordo com outros partidos, tudo dependia das políticas a acordar. De onde vem o queixume?;
— é verdade que o BE e PCP são contra o Tratado Orçamental e contra a NATO e dizem que devemos estudar a necessidade de uma eventual saída do euro? É verdade. E então? Em 1976, o CDS votou contra a Constituição da República Portuguesa e não foi por isso que se sentiu inibido, nem ninguém o inibiu, de se coligar com o PS, de Mário Soares, e de ter ministros no governo. Paulo Portas é contra a República, defende a monarquia, e não é por isso que se sente inibido, nem ninguém o inibiu, de ser vice-primeiro-ministro de um governo republicano. O CDS, de Manuel Monteiro e de Paulo Portas, foi, durante vários anos, anti-europeísta a raiar as teses nacionalistas, e não foi por isso que foi excluído do arco da governação. De onde vem o queixume?;
— é verdade que o BE e o PCP não asseguram estabilidade, credibilidade e conformidade a um governo? A pergunta é insidiosa, porque ela nunca foi feita em situações anteriores de governos de coligação. E havia fortes razões para ter sido feita quando eram outros os protagonistas. A propósito: a demissão irrevogável de Paulo Portas foi um momento de estabilidade? A revogabilidade da demissão irrevogável foi um momento de credibilidade? O comportamento de Passos Coelho, ao prometer que não aumentaria os impostos nem cortaria nos vencimentos e depois, no governo, ter feito o oposto, foi um exemplo de credibilidade? Os permanente conflitos, nos primeiros dois anos da governação anterior, entre Passos e Portas, entre este e Gaspar, entre Gaspar e Álvaro Pereira, entre este e o CDS, foram casos de conformidade governativa?

A argumentação para sustentar a tese da ilegitimidade de um governo do PS apoiado pelos partidos da esquerda parlamentar é, pois, frouxa e denota ausência de seriedade intelectual. Na verdade, é o pânico a falar, é o império dos interesses instalados a tremer, é o sonho de mais quatro anos de domínio absoluto a desfazer-se, é o pesadelo da perda de mordomias e de vassalagens, é o terror de que venha a provar-se que, afinal, existia e existe uma alternativa à política que tem sido seguida. São demasiadas coisas que estão em jogo, e o desnorte destes protagonistas é enorme.
Mas agora o que mais importa é o que realmente vão fazer o PS, o BE e o PCP. Se o PS, ao contrário da política que tem seguido desde 1974, conseguir vencer a sua ala direita (que só em irrelevâncias se distingue do PSD) e se se dispuser a construir verdadeiras políticas alternativas que valorizem o trabalho e combatam as desigualdades, é possível esperar por melhores dias. Mas é preciso ver para crer, pois a história do PS e a história de muitos dos seus protagonistas não inspira confiança.
Ao BE e ao PCP cabe exigir agora e cumprir depois. O que for acordado, se o for, é para ser respeitado por todas as partes. Se um governo do PS, sustentado num acordo com a esquerda parlamentar, vier a concretizar-se, já sabemos que terá de enfrentar o terreno minado que o governo da coligação de direita lhe vai deixar e o acinte de muitos governos europeus, a começar pelo alemão, assim como do BCE e da Comissão Europeia. A esquerda portuguesa tem, todavia, uma oportunidade rara de mostrar o que vale.