domingo, 8 de novembro de 2015

E, de repente, chegou a ética

Imagem de Bárbara Corvo.
E, de repente, chegou a ética. Não tenho memória de, em tão curto espaço de tempo, ouvir no discurso político tanta evocação à ética. À ética e à tradição. 
A tradição é invocada sempre que os argumentos se esgotam, quando não têm solidez ou nem sequer validade. Neste casos, vem a tradição como último recurso, como derradeira tentativa de se sustentar uma posição para a qual já não se encontra mais nenhuma sustentação. É o apelo à autoridade do Tempo, que supostamente dispensaria o exercício crítico. Teríamos de aceitar o que tem sido como aquilo que tem de ser e há-de continuar a ser. No caso concreto (diz o CDS, o PSD e os protagonistas da ala direita do PS): como é da tradição o PS não fazer alianças com o BE nem com o PCP, agora também não o pode fazer. 
Deste modo, o presente e o futuro nunca seriam mais do que simples projecções do passado. Se sempre assim foi, sempre assim será. Ora, como não é possível encontrar seriedade intelectual em afirmações desta natureza, um esboço de sorriso será certamente uma boa resposta.

Mas antes de chegarem aqui, à tradição, os mesmos protagonistas (CDS, PSD e ala direita do PS) passam antes por uma argumentação que alegadamente seria de uma outra natureza, mais respeitável, isto é, uma argumentação de natureza ética. No seu dizer, o que eticamente seria correcto era a coligação de direita governar, porque foi ela que venceu as eleições, mesmo não tendo representação parlamentar suficiente para o exercício da governação. 
Deste ponto de vista, as eleições deixariam de ser, assim, um verdadeiro acto democrático, em que o povo elege os seus representantes, e em que estes são eleitos para representar a vontade de quem os elegeu. Deste ponto de vista, as eleições legislativas passariam a ter uma natureza semelhante à de um concurso de beleza. A mais bela ou o mais belo é aquela ou aquele que recolhe mais votos, e todas as outras ou todos os outros são simples damas ou cavalheiros de honor. Sentam-se à volta da eleita ou do eleito, adornam, sorriem para a fotografia e proferem umas frases giras e inofensivas sobre os problemas do mundo.
No dizer do CDS, do PSD e da ala direita do PS, os representantes do povo deveriam, para eticamente serem correctos, comportar-se de modo semelhante: adornavam o governo, sorriam para a fotografia e diziam umas frases giras e inofensivas sobre os problemas do país. De um modo mais objectivo: verdadeiramente ético seria, para o CDS, PSD e ala direita do PS, os representantes eleitos demitirem-se de representar a vontade de quem os elegeu. Apesar da maioria dos deputados ter sido eleita em nome da rejeição clara das políticas do governo anterior, essa maioria deveria prescindir do dever de respeitar os compromissos pelos quais foi eleita e tornar-se num ornamento parlamentar, digna do louvor ético do CDS, do PSD e da ala direita do PS.

O direito ao disparate faz evidentemente parte dos direitos democráticos, mas será razoável pedir que não se insista muito nesse direito; caso contrário, o abuso e o conspurcamento de termos nobres, como é o caso da palavra «ética», vão-nos retirar referenciais fundamentais para o exercício da cidadania e da própria democracia.